Era noite de festa junina no Bom Jardim, bairro pobre da periferia de Fortaleza. Um rapaz loiro, que completaria 19 anos dali a quinze dias, saiu para encontrar os amigos na rua.
Filho de um professor de caratê e de uma atleta do mesmo esporte, não gostava de luta. Preferia futebol, e dias antes, num jogo com colegas de rua, driblara o valentão do bairro. Os colegas tiraram onda: "Perdeu desse loirinho, vai ganhar de quem?"
Mas o valentão não gostou da piada. Era dono de arma, chefe de gangue - onde já se viu ser driblado assim? No sábado, 20 de junho de 2015, o valentão e dois outros homens mataram o loirinho com um tiro que entrou pelo rosto e saiu pela nuca. "Até hoje não me conformo, nunca vou me conformar", contou a mãe do rapaz à BBC Brasil.
Enquanto o crime do Bom Jardim completa dois anos, Fortaleza repete um título sinistro: o de capital brasileira onde mais são assassinados adolescentes de 12 a 18 anos. Estudo divulgado nesta semana pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostra que Fortaleza é a capital com o maior IHA (Índice de Homicídios na Adolescência).
No Brasil, o IHA subiu de 2,8 em 2005 para 3,65 em 2014 (crescimento de 30%). Em Fortaleza, saltou de 2,35 em 2005 para 10,94 em 2014 - crescimento de 365%.
Com base nos dados de mortalidade do Sistema Único de Saúde, o índice estima, em cada grupo de mil adolescentes que completaram 12 anos, quantos não chegarão aos 19 anos, pois serão assassinados antes disso. Pela estimativa atual, 43 mil adolescentes devem morrer no Brasil até 2021 se as condições atuais forem mantidas.
O IHA foi criado em 2007 e resulta de parceria entre Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Unicef, Laboratório de Análise da Violência (Lav-Uerj) e Observatório de Favelas.
Caleidoscópio do país
A mortandade de adolescentes em Fortaleza tem de ser entendida no contexto do que os especialistas chamam de "nordestinização" da epidemia de violência no país, com aumento de homicídios em toda a região. Entre as regiões brasileiras, o maior índice de homicídios de adolescentes está no Nordeste.
Dos dez Estados brasileiros com mais altos índices de assassinato na adolescência, oito são nordestinos - e o Ceará tem o IHA mais alto do país. Outro relatório divulgado nesta semana, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), contabilizou 59.080 homicídios no Brasil em 2015 e também destaca o alto número de casos no Nordeste.
Segundo especialistas consultados pela BBC Brasil, o aumento do número de homicídios na região está associado à urbanização desordenada e à reorganização dos mercados ilícitos no Brasil.
De tráfico de drogas a roubo de bancos, carros e cargas, as cidades nordestinas viveram a partir dos anos 2000 o que cidades como Rio e São Paulo conheceram a partir dos anos 1980 e 1990, com maior organização das quadrilhas e onipresença de armas de fogo.
O coordenador do Unicef para os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí, Rui Aguiar, disse à BBC Brasil que os rearranjos dessa migração criminosa se juntam a muitos anos de exclusão das populações mais pobres, empurradas para a periferia das grandes cidades e aglomeradas em bairros onde faltam saneamento, lazer, escola de qualidade e oportunidades de emprego.
"Essa é uma construção de pelo menos duas décadas de exclusão. São 20, 30 anos de políticas que não oferecem nada à população. Faltam políticas voltadas para a adolescência, e o panorama em Fortaleza é uma espécie de caleidoscópio do que acontece no resto do país", afirma.
Nos conflitos de território, mortes a 500 metros de casa
Em 2013, as mortes provocadas pelas chamadas causas externas (acidentes e violência) superaram todas as outras em Fortaleza. Em 2015, o governo do Ceará lançou o Pacto por um Ceará Pacífico, para tentar implementar políticas de redução de mortalidade.
No ano seguinte, surgiu o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, uma parceria entre governo, Assembleia Legislativa, Unicef e entidades da sociedade civil.
Um dos primeiros projetos do comitê foi realizar uma pesquisa sobre as vítimas dos homicídios de 2015, ano em que 630 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos no Ceará, sendo 312 em Fortaleza. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social.
Os resultados estão no relatório Trajetórias Interrompidas, lançado na última segunda-feira na Assembleia Legislativa do Ceará. O levantamento mostra, para além dos números gerais de homicídios, como se constrói, na capital cearense e em mais seis cidades do Estado, a matança cotidiana de um grupo especialmente vulnerável, os adolescentes com menos de 19 anos.
A primeira descoberta foi geográfica: em Fortaleza, em metade dos casos investigados, os adolescentes foram assassinados a 500 metros de casa; 73%, no próprio bairro. De todas as mortes, 44% aconteceram em apenas 18 dos 119 bairros da capital, 3% da área da cidade.
O perigo tão perto de casa se explica: 54% dos homicídios investigados pelo comitê resultaram de conflitos de território, como são conhecidos os conflitos na própria comunidade, seja entre grupos de traficantes e outros criminosos, seja entre gangues, seja por vingança, crimes passionais ou desavenças pessoais - como o drible que resultou na morte do rapaz do Bom Jardim.
Pelos dados da pesquisa, 40% dos adolescentes mortos mantinham algum tipo de conflito no território em que viviam; 53% deles já haviam sofrido ameaças.
As chamadas "mortes por engano" - crimes por encomenda que acabam vitimando alguém que não era o alvo inicial- respondem por 14,38% dos assassinatos e têm se tornado cada vez mais comuns.
"Chamam morte por engano, como se aquela fosse a morte errada e houvesse a morte certa", indigna-se o educador Joaquim Araújo, que percorreu os bairros de Fortaleza para a pesquisa.
Numa das casas, numa viela entre os bairros de José Walter e Planalto Ayrton Senna, uma mãe contou que o filho de 17 anos fora morto não perto, mas na porta de casa, e até hoje não se sabe o motivo. Entre as suspeitas, os ciúmes do ex-marido da namorada do rapaz e a possibilidade de ele ter sido confundido com um primo, envolvido com roubo de cargas e ameaçado por rivais.
"Eu ouvi o tiro que matou meu filho", contou a mãe do rapaz aos pesquisadores do comitê, que ainda viram o buraco de bala na porta. Como ela, muitas mães falam dos tiros: 94% dos assassinatos foram cometidos com arma de fogo.
O coordenador da pesquisa, Tiago de Hollanda, disse que o levantamento tentou dar voz às famílias, pois muitas se sentiam pressionadas pelo fato de os filhos assassinados terem algum envolvimento com a criminalidade. Destaca que, diferentemente do que se especulava, dívidas por drogas foram citadas como causa de menos de 13% dos homicídios.
Coordenador do serviço de epidemiologia da Secretaria de Saúde de Fortaleza, Antonio Lima é especialista nas chamadas arboviroses, como dengue e zika. Acompanhou a pesquisa com um olhar médico e descobriu que os bairros com maior número de homicídios são os mesmos onde há mais sífilis, tuberculose e gravidez adolescente. Provou com números a superposição dos mapas de violência e de um sem-número de ausências - saúde, escola, emprego, lazer.
Pelos números da pesquisa, dos adolescentes mortos em Fortaleza, 55% eram filhos de mulheres que foram mães na adolescência; 64% tiveram amigos assassinados; 73% abandonaram a escola pelo menos seis meses antes da morte; 55% haviam experimentado algum tipo de droga (lícita ou ilícita) entre 10 e 15 anos; 73% sofreram violência policial anterior.
"Nesses assentamentos precários, áreas de altíssima densidade demográficas, as pessoas estão sujeitas a um conjunto de agravos. É muito difícil pensar em redução efetiva de violência sem mudar essas questões socioeconômicas. Porque, para a classe média, o que gera sensação de insegurança é o crime contra o patrimônio, que não é tão alto em Fortaleza. Mas essa juventude está morrendo", afirma Lima.
O relator do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, deputado Renato Roseno (PSOL-CE), destaca que, como ocorre no resto do país, os homicídios em Fortaleza atingem prioritariamente uma parcela específica da população.
"É um genocídio de jovens pobres, negros e do sexo masculino, num quadro de vulnerabilidade social em territórios mais pobres, junto com uma cultura de violência e a forte evasão escolar."
Impunidade e indiferença
O relatório traz várias recomendações, como garantir a proteção das famílias dos jovens, melhorar a qualidade de vida nesses bairros, com saúde, escola e oportunidades de emprego, investigar e punir os responsáveis pelos homicídios, capacitar a polícia para fazer abordagens adequadas e reduzir a violência policial.
Isso embora, diferentemente do que acontece em outras capitais, apenas 4% das mortes de adolescentes estejam relacionadas a conflitos com policiais e outros agentes da lei. Ao mesmo tempo, há casos de grande repercussão, como o da chacina de Messejana, em novembro de 2015, em que policiais militares foram denunciados pelas mortes de 11 pessoas (sete delas com menos de 18 anos).
A vice-governadora do Ceará, Izolda Cela, afirmou à BBC Brasil que o alto número de homicídios de adolescentes era um problema já evidenciado e motivou uma mobilização envolvendo vários segmentos da sociedade. Ela cita o Pacto por Ceará Pacífico como exemplo de política pública pensada para a questão.
A vice-governadora disse que o Estado tem investido em projetos relacionados à redução de homicídios, como ocupação dos territórios, busca ativa dos jovens de 15 a 17 anos que estão fora da escola, combate à evasão escolar e compromisso de punir os responsáveis pelas mortes. Afirmou, porém, que o combate à impunidade tem de se transformar em bandeira de todo o sistema judicial brasileiro.
Ao longo da pesquisa, foram analisados 1.215 casos de homicídios de adolescentes ocorridos em Fortaleza de 2011 a 2016. Só em 2,8% dos casos houve condenação dos responsáveis em primeira instância.
A equipe que percorreu os bairros de Fortaleza para localizar as famílias dos jovens assassinados também relata outra reação comum à pergunta sobre se haviam sido procurados por alguém do serviço público. "Muitas vezes ouvimos: vocês são os primeiros que aparecem aqui. Só houve indiferença", contou o educador Joaquim Araújo.
Para essas famílias, o sentimento de perda e saudade se misturou com o de revolta pela dor de crimes sem punição. A mãe do rapaz morto por causa de um drible no futebol disse à BBC Brasil, por exemplo, que o filho não tinha envolvimento com o crime.
"Ele não gostava de estudar, admito. Mas não fazia mal a ninguém." Depois da morte do filho, ela entrou em depressão. Evangélica e atleta, afastou-se de Deus e do caratê. Voltou há pouco tempo, quando retomou também o trabalho na confecção de roupas esportivas.
Diz ainda se lembrar dos tiros na rua, da gritaria, do rosto desfigurado do rapaz. Fez as pazes com a religião e está criando um neto, filho do filho assassinado. A saudade é companheira de todo dia: "Quando rezo pergunto a Deus qual o sentido de ter perdido meu filho".
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