Numa reunião simbólica, representantes
dos povos indígenas foram, finalmente, após mais de dois anos de espera,
recebidos pela presidente Dilma. Como
nas pinturas que retratam momentos históricos (a primeira missa, o grito do
Ipiranga e outras que ilustram os livros escolares), as imagens que o governo
apressa-se em produzir são arrumadas, e seus personagens, distribuídos nos
lugares que lhes cabe.
"Só que não", como dizem os
mais jovens nas redes sociais. Sabendo que, naquele exato momento, seus
direitos estavam sendo ameaçados em manobras no Congresso, os índios não se
deixaram enganar e expuseram sua insatisfação na carta que divulgaram em
seguida. Não podem esquecer o genocídio que sofrem no chão que um dia foi seu.
De todo modo, permanece o simbolismo: a
civilização "Matrix" está tão descolada do mundo real que não
consegue passar da gesticulação ao gesto, da representação à presença. Ainda
assim, esforça-se para produzir ao menos a impressão de que está respondendo às
demandas da população.
Afinal, é disso que se trata, da
presença desse novo personagem que tem forma de multidão e é polifônico,
multicêntrico, imprevisível. Tudo se faz para ele: audiências, reuniões,
aceleração de processos e votações, decisões sobre assuntos encalhados há
vários anos.
O povo nas ruas destravou o Brasil. Além
das conquistas imediatas, como no preço das passagens, o novo e indefinível
personagem forneceu uma "licença política" até para antigas
organizações voltarem às ruas com suas cores, símbolos e pauta de
reivindicações.
Como em todos os momentos em que novos
"espectros" rondam o mundo conhecido, há nele muitas reações: segurar
as rédeas com mais força, nostalgia de quem passou de protagonista a figurante,
histeria de quem se sente ameaçado, esperança de quem ainda crê na renovação
das estruturas, oportunismos variados.
Mas há uma diferença: hoje, são poucos
os entes políticos capazes de metabolizar a força tornada presente, pois a
estagnação já atinge muitos grupos e em grau avançado.
Tenho a esperança de que, no Brasil,
consigamos viver a transição civilizatória --que já se iniciou-- com
alternativas menos conflituosas que levem mais à renovação do que à ruptura, embora
saiba que uma combinação de ambas é inevitável e necessária.
Quando vejo os caciques políticos
chamando os índios para aparecer na foto, lamento, pois vejo a repetição
neurótica sob a gesticulação nervosa que oculta a ausência do gesto. Quando
vejo a altivez indígena recusando a manipulação, alegro-me com a força moral e
ética de sua causa traduzida em ato.
O movimento oceânico que nos ronda pode
parecer inconsciente para alguns, mas é consciente para si mesmo.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio
Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. Escreve às sextas na
versão impressa da Página A2.
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