Aconcheguei-me aos meus filhos e chamei os amigos
Jane, Treici, Marcelo e Natalia para ver outra vez o filme em que a atriz
Barbara Sukowa vive um dos períodos mais significativos na vida da filósofa
Hannah Arendt. Numa pequena pausa da agenda intensa, alimento para a mente e o
coração.
Para mim, o filme de Margarethe von Trotta é "de
ação". Não pelo frenesi típico desse gênero, mas pelo que tem de
instigante, pelo alvoroço do pensar que interrompe o automatismo a que somos
empurrados cotidianamente. A repetição apenas atende ao querer alheio de si
mesmo, do que dizer, fazer e ouvir. É impotente para criar, infalível para
estagnar.
O filme impressiona pela fidelidade ao pensamento em
ação de Hannah Arendt, que, ao relatar o julgamento do nazista Adolf Eichmann,
recusa a comodidade da condenação fácil e escolhe a imprevisível singularidade
de um mergulho mais profundo. Denuncia, assim, que a banalização do mal pode
esconder-se por trás do que poderíamos chamar de banalização do bem: a
repetição sem reflexão do que um sistema autoritário consagra como normal,
desejável e bom.
Nas escolhas de Hannah afirmam-se a autenticidade e o
irredutível desejo de autoria com os quais uma pessoa consegue situar-se no
mundo por sua singularidade, sem limitar-se a atender o que dela se espera em
previsíveis demandas.
Ao contrário do individualismo, que atomiza a força
integradora das relações, essas pessoas se dispõem à troca na diferença. Não
fazem o que querem nem o que os outros querem, mas o que devem fazer. Conhecem
o direito, mas conhecem mais ainda o irrenunciável dever contido no direito: de
ser o que é, de afirmar o que sua singularidade lhes possibilita que sejam,
como o psicanalista francês Alain Didier poeticamente insiste em caracterizar o
dever-ser.
É contra essa irreflexão, de atender sem atender-se,
essa "descapacidade" de agir sem pensar, que Hannah Arendt se insurge
e denuncia como a causa profunda das bestialidades e da banalização do mal. Não
por acaso, pagou muito caro por recusar-se a depositar a oferta de seu
pensamento sofisticado e generoso no mercado das demandas alheias, sempre
ávidas por inquirir, condenar e matar a tudo o que possa rotular de heresia.
Tornou-se o que deveria ter sido. Foi capaz de dizer, em seu tempo, o que os
ouvidos e mentes deste outro tempo, longínquo futuro, não poderiam ser privados
de ouvir.
Hannah nos sussurra a coragem de seguir a nossa
consciência sem nos deixar ensurdecer pelos que profetizam a ausência de futuro
e nos querem fazer acreditar que a história termina neles. Em "A Condição
Humana", expressa sua esperança, nosso legado: "Os homens, ainda que
devam morrer, não nasceram para morrer, mas para recomeçar."
O artigo de hoje da Marina na FOLHA de São Paulo
23/08/2013
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